Sábado, 5 de Novembro de 2016

Reeditando (67)

 

Ernesto revendo um texto

Ernesto Lara Filho revendo um texto n' O PLANALTO

 

«O PLANALTO»:

O JORNAL E OS SEUS JORNALISTAS

 

     Ao fim de mais de vinte e três anos, o autor destes postais tem falhas de memória e pode faltar ao rigor como não queria, quando recorda pessoas e factos do passado. O que ele lembra bem neste momento é que o Jornal se chamou logo de início «O Planalto», depois «Voz do Planalto», por fim e de novo «O Planalto»; que veio a lume e começou a ser publicado em 1930.

     Com sede na Avenida 5 de Outubro, com esquina para a rua..., para a rua... (qual o nome?), o Jornal tinha como diretor o senhor Gilberto Mascarenhas, homem de trato fino, olhos vivos, cabelo branco, sempre de casaco e gravata como se não estivesse em África, falando mansamente, sem nunca perder a compostura e incapaz de pronunciar uma palavra feia.

     Pelas colunas d’ «O Planalto», quando as notícias, as reportagens e os artigos de fundo saíam das mãos incansáveis dos tipógrafos (tabuleiro de composição sobre a banca, cada letra na caixinha respetiva, a, b, c, em normal, em itálico, granel alinhado na régua, corpo 8, corpo 10, corpo 12); pelas colunas do periódico, passou o talento de jornalistas como Martins Lopes e Albuquerque Cardoso — passou também o fulgor, a ironia, a chispa de Ernesto Lara Filho, o mais jovem e o mais dotado de todos.

     Foi n’ «O Planalto», a 3 de março de 1961, talvez ainda com os olhos marejados de lágrimas, que este último deu a notícia da morte do poeta Alexandre Dáskalos, ocorrida em Portugal, no Sa­natório do Caramulo:

 

     «Morreu um Companheiro, um Amigo, mais do que isso, um Irmão. Morreu tuberculoso, esquecido, desamparado, pobre, longe da Terra-Mãe que cantou em versos deslumbrantes. Longe da sua Angola, do seu Huambo, distante destas cheias do Cubango, do Cunene e do Cuvelai.»

 

     Sem o brilho do Ernesto Lara Filho, mas muito mais regularmente, quem escrevia também lá era o Alnusa, empregado da Livraria Lello e guarda-redes do Sport Huambo e Benfica; o Sançardote, virtuoso do violino, que tocava nas missas solenes da Sé; o Rui Aniceto, que fumava muito e gostava de rechear os textos com palavras difíceis, como «encómio» (em vez de elogio), «antístite» (em vez de bispo), «bardo» (em vez de poeta), «estrénuo» (em vez de corajoso) — termos de arrepiar, que obrigavam o leitor a ir continuamente ao dicionário até perder a paciência.

     O Rui Aniceto!... Um determinado, um esforçado, um lutador. De calções de caqui, camisa de ganga, sandálias nos pés, apanhou muita palmatoada da Dona Laura Pepe, lutou sem descanso contra a tabuada (especialmente contra a «casa dos noves»), encheu de cópias muitos cadernos, estudou História horas a fio, mas trocou sempre o nome do Conde Castelo Melhor pelo do Marquês de Pombal, a data da Restauração da Independência pela do Terramoto de Lisboa.

     Já mais velho, de calças compridas, casaco e gravata (tinha aquela mania de que «as pessoas se devem vestir decentemente»), já «plumitivo profissional», como gostava de dizer, batia os artigos nas teclas da máquina com os dois indicadores: tic-tic, tic-tic, tic-tic, olhos firmes no linguado metido no rolo, costas coladas ao espaldar da cadeira, baforadas de fumo saindo da boca. Parava frequentemente: para arredondar a frase, escolher o adjetivo, colocar o advérbio, meter as aspas de citação, as re­ticências de suspensão, compenetrado e seguro de que escrevia para a posteridade.

     No fim, perguntava ao Chefe de Redação:

     — Então, que tal?

     Amigo íntimo da família, Serafim Molar lia a contragosto aquela prosa densa: uma, duas, três vezes. Incapaz de desabafar e dar voz ao que pensava («És um desastre, uma negação, muda de ofício e vai para o campo cavar batatas!...»), fazia de conta que apreciava:

     — Nada mal, nada mal...

     Casamento importante, visita ilustre, inauguração oficial, tudo «O Planalto» registava nas suas páginas:

 

     «Numa cerimónia de imenso brilho e de grande significado, na Igreja de Nossa Senhora de Fátima, casou ontem a menina Maria das Dores, filha do ilustre industrial Fernando José Figueiredo. Presidiu ao ato o Padre Serafim Coelho.»

 

***

 

     «No dia 3 próximo passado, proveniente do Lobito, chegou a Nova Lisboa o Senhor Diretor do Caminho de Ferro de Benguela, Engenheiro Augusto Bandeira. Veio acompanhado de sua Excelentíssima Esposa e Filhos. Registamos o facto e desejamos a toda a família uma estadia agradável.»

 

***

 

     «Com a presença de alguns populares e as honras do Prelado da Diocese, Dom Daniel Junqueira, foi lançada a primeira pedra na construção do Seminário Maior de Cristo Rei. Sua Excelência Reverendíssima fez uma alocução que calou fundo no coração dos presentes.»

 

     Em 1974, informado do que sucedia em Portugal, «O Planalto» dava também conta do 25 de Abril e da Revolução dos Cravos: primeiro a medo, sem avançar prognósticos, depois livre da Censura, que acabara de ser suprimida, incluindo na 1ª página parangonas sobre o acontecimento.

     O que o Jornal ignorava na altura e estava talvez longe de imaginar, era que anunciava então o princípio do seu fim — que iria acabar brevemente, não saindo mais para a rua, nem às terças, nem às quintas, nem aos sábados.

 

Inácio Rebelo de Andrade

do livro de memórias «Quando o Huambo era Nova Lisboa»

 

publicado por olhoatento às 05:42
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